Iorubá, Fon e Kimbundu: Lorenzo Turner Registrou os Terreiros Baianos em 1940
Família de santo retratada em 1940. Foto: Anacostia Museum, Smithsonian Institution, Washington, USA
No dia 14 de junho, uma menina de 11 anos tomou uma pedrada na cabeça depois de sair de um terreiro no Rio de Janeiro. Diante de gritos como "Jesus está voltando" e outras ofensas religiosas, os dois agressores erguiam suas Bíblias e bradavam em nome de Deus. O caso, registrado na delegacia como preconceito de raça, cor, etnia ou religião, ganhou os maiores portais do país e estampa, em cores desonestas, mais um triste caso de intolerância religiosa. Além de ignorantes, esses dois homens reproduzem o discurso de ódio propagado por evangélicos famosos, mas essa pedra, muito dolorida para a jovem atacada, foi arremessada também na história do país. As religiões afro-brasileiras são algumas de nossas mais fortes heranças.
Em busca desse rastro quase apagado da memória brasileira, o etnomusicólogo francês Xavier Vatin, cria de Pierre Verger, anda descobrindo altos ouros da história do negro no Brasil, principalmente na Bahia da década de 1940. Em seu pós-doutorado, ele encontrou, meio sem querer, parte significativa do acervo do linguista norte-americano Lorenzo Turner na Universidade de Indiana. São centenas de fotos e 52 horas de áudio da passagem do pesquisador pelo Brasil entre 1940 e 1941. Na ocasião, ele pesquisava as línguas de matrizes africanas faladas por aqui, principalmente nos terreiros. "O diretor dos arquivos da universidade me falou do Turner, de que, apesar de muitos anos de pesquisa, eu nunca tinha ouvido falar. A primeira coisa que eu ouvi foi 'Menininha cantando'", ele conta, emocionado.
Em quase um ano no país, Turner, que é o primeiro linguista a ter o diploma da Universidade de Harvard, visitou Sergipe, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia, onde ficou por sete meses. "Esse trabalho é importante para mostrar mais uma vez para a sociedade brasileira que o que atrai pesquisadores do mundo inteiro há mais de um século para o Brasil é a cultura negra. Então, como estamos num contexto de discriminação e racismo ligado à intolerância religiosa e num período em que o candomblé ainda sofre tanto preconceito, é importante mostrar o quanto essa cultura negra, por mais que às vezes seja estigmatizada aqui no Brasil, ela é valorizada no exterior", explica Vatin.
Outro retrato feito por Lorenzo Turner em sua passagem pelo Brasil. Foto: Anacostia Museum, Smithsonian Institution, Washington, USA
Neto de escravos na Carolina do Norte, o linguista registrou grandes pérolas do Brasil dos anos 1940. Na Bahia, as 17 horas de gravação incluem cantos, rezas e ritos fúnebres de grandes nomes do candomblé, como Manoel Falefá, Martiniano Eliseu do Bonfim, Joãozinho da Gomeia e Mãe Menininha do Gantois. "O resgate de um patrimônio litúrgico de cantigas, rezas, ritos e histórias contadas. De lá pra cá, infelizmente tem cantigas e rezas que se perderam; dentro desse patrimônio, tem coisas que não existem mais hoje", conta Vatin, que tem planos de passar esses registros musicais aos terreiros para devolvê-los à memória deles. Há ainda o registro da voz do Mestre Bimba, fundador da capoeira regional, e um áudio raro da voz do escritor Mário de Andrade. No material, rico em anotações linguísticas, foram encontrados principalmente os idiomas Iorubá, Fon, Kimbundu e Kibongo, além de registros da capoeira e de músicas de carnaval.
Mãe Menininha (em destaque) com suas filhas de santo em frente ao terreiro de Gantois. Foto: Anacostia Museum, Smithsonian Institution, Washington, USA
Turner foi, pelos registros, o único pesquisador a visitar municípios como Cachoeira, no Recôncavo Baiano. "Descobri incrivelmente, quando eu voltei de Bloomington, que a minha vizinha, uma senhora de 87 anos, é viúva de um pai de santo que ele gravou." O linguista se entrosou com as pessoas de santo: assim, na busca pelo conteúdo linguístico africano, levou o Gantois a um estúdio de gravação e gravou, entre outras coisas, esse ouro que exibimos aqui na VICE. O canto para Oxóssi é interpretado por Mãe Menininha.
gravação e gravou, entre outras coisas, esse ouro que exibimos aqui na VICE. O canto para Oxóssi é interpretado por Mãe Menininha.
Na bagagem, Lorenzo Turner levou mais de cerca de 350 discos de alumínio, os mesmos que Xavier Vatin encontrou em 2012 na Universidade de Bloomington. Vatin, que viveu ao lado do comentado etnólogo Pierre Verger em seus últimos anos de vida, exalta a horizontalidade do olhar de Turner: "A série de fotos que ele fez na Bahia durante sete meses não é de pessoas de santo, como Vergé fez e outros fizeram depois – são as pessoas posando pra ele e somente mostrando seus irmãos do Brasil. O povo de santo é retratado com mais naturalidade, como se não tivesse o olhar exótico que os europeus tinham".
O resultado deste trabalho será uma exposição de fotografias no Museu Afro Brasil, em São Paulo, prevista para agosto. Além disso, preparam-se um CD duplo, com lançamento agendado para o final do ano, e um livro, publicado inicialmente nos EUA - e em inglês -, no ano que vem.
Fonte:https://www.vice.com/pt_br/article/lorenzo-turner-terreiros-brasileiros-em-1940?utm_source=vicefbbr
Peu Araújo
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