19 outubro 2015

Terreiro da Mãe Beata de Iemanjá, na Baixada Fluminense, vira Patrimônio Cultural


O barracão do terreiro Ilé Omiojúàrò, em Miguel Couto, Nova Iguaçu, tem as paredes revestidas de fotos, prêmios e reportagens. No canto direito, um mapa da África. Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de Iemanjá, entra com passo lento, a mão segurando firme na bengala adornada pela imagem de um elefante. A fragilidade dos 84 anos desaparece quando ela começa a falar.

Conhecida pela sua luta contra o preconceito racial e religioso, Mãe Beata ganhou mais um quadro para a sua coleção. No próximo dia 27, seu terreiro receberá o título de Patrimônio Cultural na 28ª edição do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O reconhecimento se deve ao trabalho de preservação da cultura africana.

— Fiquei muito feliz. É um sinal de respeito ao legado dos nossos ancestrais e à nossa fé — comemora.

Mãe Beata não larga a bengala com a imagem de um elefante africano Foto: Mazé Mixo / Extra

Nascido no norte da Nigéria, na África, o bisavô de Mãe Beata chegou à Bahia no sétimo tombeiro que aportou no Brasil. Foi vendido como escravo, mas nunca abandonou o candomblé. Em janeiro de 1931, a bisneta Beatriz nasceu numa encruzilhada, na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano:

— Minha mãe estava pescando quando a bolsa dela se rompeu. A água foi tingida de sangue e a parteira veio correndo. Assim que nasci, ela disse que eu era filha de Exu com Iemanjá.

Nos anos 60, ela deixou a Bahia porque “filha de Exu não fica num lugar só”. Escolheu a Baixada Fluminense — “esse grande pedaço de África”. Em Miguel Couto, fincou raízes. Promove oficinas e festas, e se esforça para ajudar as pessoas do bairro.

Mãe Beata sentiu o preconceito contra sua cor de pele ainda pequena. Na escola, não podia vestir fantasia de anjo. “E existe anjo negro?”, perguntava a professora. Anos mais tarde, conseguiu vingança. Numa viagem a Berlim, na Alemanha, para participar de uma peça, ela colocou asas e posou em frente ao Obelisco da Vitória:

— Tirei foto num monumento feito do ouro roubado daqui. Nosso país é muito rico, só falta ter uma pessoa com caráter no poder. E falar que no Brasil não existe preconceito é mentira.

A roupa e os acessórios também remetem à sua herança Foto: Mazé Mixo / Extra

Quando o assunto é o Brasil, Mãe Beata se emociona. Para quem já foi recebida pelo ex-presidente Lula, ela está profundamente desanimada com o país. Sobre os políticos, diz que “é tudo farinha do mesmo saco”. Se fala da violência urbana, não consegue conter as lágrimas:

— Os meninos pobres estão marcados para morrer. Antes, favela era samba e respeito ao negro. Agora chamam de comunidade e entram atirando. Uma vez me perguntaram se tenho medo de morrer pelas coisas que falo. Respondi que, se morresse pela minha raça, seria rindo da cara de quem me matou. E os meus ancestrais continuariam o meu trabalho.

Mãe Beata: “Nunca recebi ajuda de político, apenas reconhecimento. Eles sabem que tem uma negra de olho neles” Foto: Mazé Mixo / Extra

História guardada na memória

Mãe Beata quer ir a Brasília para receber o prêmio, mas não sabe se a saúde vai permitir. Se não puder, mandará um dos seus filhos (tem quatro biológicos e já perdeu as contas de quantos de santo) no seu lugar.

— Esse é o meu acervo. Meu sangue é negro e procuro guardar a nossa história. Lutarei pela memória do meu povo até quando os orixás me permitirem. Falar só aqui dentro não adianta, é preciso ir para a rua gritar — reflete.

Autora dos livros “Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros” e “Histórias que a minha avó contava”, Mãe Beata defende a oralidade — modo com seus ancestrais passavam suas histórias para as novas gerações:

— Com o papel, o vento leva e a chuva molha. Acaba rápido. O que Olorum põe dentro da nossa cabeça ninguém pode tirar. É uma energia muito forte.

Mãe Beata se despede, no terreiro Ilé Omiojúàrò, em Miguel Couto, Nova Iguaçu Foto: Mazé Mixo / Extra

Mesmo com a dificuldade para andar, ela faz questão de acompanhar a equipe até o jardim. No último minuto, pede para incluir na matéria um agradecimento:

— É para o Iphan, por acreditar em mim. Eles estão reconhecendo o trabalho de uma mulher que só tem até o 3º ano do primário. Falo muito e incomodo muita gente. Só queria mesmo que alguém me escutasse.

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